03/10/2005

A caixinha mágica e a caixa de fósforos

Durante o período em que estive afastado da web, assisti a um dos Prós e Contras na RTP1 que andava à volta dos incêndios.

Um dos temas em debate versava o facto de haver, ou não, uma ligação entre a exibição de imagens dos incêndios e a multiplicação de casos do fenómeno.

Basta ter conhecimento de que a Polícia Judiciária refere, com frequência, que a maioria dos incendiários identificáveis praticam os respectivos actos por razões fúteis, para perceber que é funesta a exibição de imagens apelativas.

Já sei que muitos me vão querer trinchar por dizer que as imagens são apelativas. Só refiro o facto de não conhecer ninguém que não goste de observar o crepitante fogo numa lareira. De facto são apelativas, e no caso dos incêndios são-no para quem nada perde, directamente, com eles.

Não me parece que a possibilidade de ver manobrar helicópteros não seja motivo suficiente para que muita gente ateie fogo sem ter a consciência do que está a fazer. Para provar a existência de muita inconsciência, basta dar uma volta pelas zonas onde o perigo resultante do aparecimento de um incêndio é maior, e observar a quantidade de pequenos fogos ateados para roçar mato, afastar as cobras, limpar matagais, queimar lixo, fazer churrascos, etc, e em que os respectivos promotores se mantêm junto ao fogo, aparentemente inconscientes de que a todo o momento se pode abrir a caixa de pandora. Este verão deambulei pelas albufeiras de várias barragens ladeadas de florestas e, à noite, viam-se claramente fogueiras nas margens.

Havia até casos em que parecia que os proprietários queimavam o mato rasteiro que separava suas casas da floresta, na tentativa de manter o terreno limpo e assim dificultarem a eventual progressão de um incêndio, que se acercasse, vindo do arvoredo. Suponho que a hipótese de o fogo se escapar para o arvoredo não lhes ocorresse.

Estou convencido de que muita cachopada (e adultos também, naturalmente), pela socapa, ateia fogos para ver bombeiros, helicópteros, câmaras de televisão, enfim, o movimento que nunca tem possibilidade de ver. Como se, tivesse encontrado uma forma de trazer para junto de si o bulício da civilização que uma parte substancial da população parece adorar.

Estou também convencido de que a vingança e a inveja são motivos mais que suficientes para que muitas pessoas risquem o fósforo, tanto mais que a possibilidade de sucesso em provocar um gigantesco incêndio, escolhendo um locar adequadamente ermo para o provocar, é inversamente proporcional à possibilidade de se vir a ser apanhado.

Justamente as televisões mantêm fresca, na cabeça dessas pessoas, a memória dessa possibilidade. Não só exibindo os efeitos, como relembrando que os fogos foram ateados em locais ermos, como quem diz: “é assim que se faz, estão a perceber?”. Aliás, não há bombeiro ou político que evite “explicar” que é assim que se faz a coisa.

A ladainha dos meios aéreos (“ganda pinta – helicópteros por todo o lado”) é vomitada recorrentemente a pretexto de serem muitos, ou poucos, ou terem chegado tarde, ou serem caros, ou nacionais, ou estrangeiros, grandes, pequenos, com asas, sem elas, etc, etc, mas sempre lembrando que eles não estão aí para outra coisa.

Já várias pessoas me disseram, cara a cara: “o mal é passarem helicópteros, até parece que são eles que pegam o fogo”. Parece-me razoável supor que a passagem de helicópteros é suficiente para relembrar aos “voluntários” que a caixa de fósforos resulta.

Voltando ao Prós e Contras, um dos convidados era o director de informação da RTP e outro um jornalista.

O primeiro tentava tapar o sol com a peneira explicando que os seus jornalistas tentavam evitar enquadramentos em que se vissem chamas por detrás dos repórteres.

O segundo era mais surreal.

Tentava ele defender que não havia estudos que comprovasses uma ligação entre a exibição de imagens e o aparecimento de incêndios ... Ficámos a saber que aquele ardina nos queria convencer que desconhecia a existência e os mecanismos pelos quais a publicidade actua ... Queria que acreditássemos que desconhecia a indução de desejo por exibição de imagens apelativas, qualidade que, aliás, nenhum dos presentes negava, muito embora preferissem o termo “dramáticas”.

Há, de facto, muita gente que “vive” dos incêndios. Alguns habitam a caixinha mágica.

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